De 15% a 20% dos cemitérios brasileiros já tinham casos de contaminação do subsolo e de água subterrânea por sepultamentos inadequados
Necrópole, sepulcrário, campo-santo, a última morada. São muitos os sinônimos para a palavra cemitério, originária do grego e do latim. Nenhum termo, porém, é capaz de dimensionar a dor dos brasileiros que têm vivenciado nesses espaços o luto coletivo pelas quase 300 mil mortes decorrentes da Covid-19.
As consequências a médio e longo prazo dos enterros em massa, em cemitérios construídos sem planejamento adequado, podem vir ainda em forma de impactos ambientais e transmissão de doenças para quem vive perto dessas áreas ou trabalha ali. Há anos, estudiosos – como geólogos, engenheiros ambientais e especialistas em saúde pública – alertam para a necessidade de avaliar os impactos ambientais dos cemitérios brasileiros.
No artigo Cemitérios: fontes potenciais de impactos ambientais, a geógrafa Rosiane Bacigalupo destaca que, após o óbito, cada corpo decomposto libera em torno de 30 a 40 litros de necrochorume. “É um neologismo (criação de palavra) conhecido técnica e cientificamente por produto da coliquação, criado por analogia ao chorume dos resíduos orgânicos dos aterros”, explica.
É possível definir o necrochorume como uma solução viscosa, composta em sua maior parte por água, rico em sais minerais e substâncias orgânicas degradáveis. Sua formação se dá em virtude do processo de decomposição. De acordo com o professor Alberto Pacheco, da Universidade de São Paulo (USP), um dos principais estudiosos do tema e fonte para a maior parte das pesquisas na área, “os cemitérios são um risco potencial para o ambiente”.
“Logo, esse problema vem se agravar em virtude de que a maioria dos cemitérios foi construída em lugares que apresentam valor imobiliário baixo, sem quaisquer uso de estudos geotécnicos prévios”, destaca.
Um dos estudos mais recentes sobre o tema leva o título de Cemitério x Novo Coronavírus: impactos da Covid-19 na saúde pública e coletiva dos mortos e dos vivos. No texto, de 2020, a geógrafa Francisleile Lima Nascimento analisa as consequências dessa correlação.
Pós-graduada e mestre em desenvolvimento regional da Amazônia, ela afirma que o risco de contaminação microbiológica com a construção de cemitérios em meio urbano é presumível. “A água subterrânea é mais atingida pela contaminação por vírus e bactérias. Nascentes naturais ou poços rasos conectados ao aquífero contaminado podem transmitir doenças de veiculação hídrica, como tétano, gangrena gasosa, toxi-infecção alimentar, tuberculose, febre tifoide, febre paratifoide, vírus da hepatite A, dentre outras.”
A especialista destaca que a população de baixa renda está mais propícia a ser infectada por essas doenças. “Geralmente, essas pessoas vivem em regiões onde não existe acesso à rede pública de água potável e possuem sistema imunológico natural baixo”, frisa.
Francisleile Nascimento aponta que, antes da pandemia, cerca de 15% a 20% das necrópoles brasileiras já apresentavam incidência de casos de contaminação do subsolo e de água subterrânea com presença principalmente de íons de cloreto e nitrato; vírus e bactérias; e necrochorume.
A morte também polui, e os cemitérios podem armazenar elementos de alto risco pela “inumação (sepultamento), tumulação e cremação”, se esses não forem bem instalados e gerenciados, salienta a estudiosa. Com isso, a principal preocupação é com a contaminação do aquífero freático.
“Surge a necessidade de levantar novas questões quanto ao gerenciamento e dos ambientes mórbidos, principalmente neste momento em que o mundo vivencia um dos maiores problemas de saúde, ocasionado pelo novo coronavírus”, aconselha.
“Considerando que não se tem certeza de quanto tempo o novo coronavírus permanece no cadáver após ser sepultado, e entendo que os compostos orgânicos liberados no processo de decomposição dos cadáveres são degradáveis e causam aumento da atividade de micro-organismos no solo sob a área de sepultamentos, nota-se nesse processo agravo quanto ao processo de contaminação e proliferação do vírus no ambiente das necrópoles”, diz trecho do estudo da geógrafa.
Ela chama a atenção para a inexistência de uma lei federal específica que possa disciplinar o Regime dos Bens Funerários, especialmente no que diz respeito aos cemitérios e às sepulturas, o que inclui também a segurança dos trabalhadores do setor.
“Se o serviço funerário é predominantemente uma competência dos municípios, existe assim, segundo os autores pesquisados, uma porcentagem de liberdade por parte dos gestores governamentais, no que se refere à prioridade de oportunidade para investir no setor destinado a isso”, analisa a estudiosa.
Doutoranda em recursos hídricos e saneamento ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Camila Baum destaca que os cemitérios são estabelecimentos que, até poucos anos atrás, não não tinham a exigência de licenciamento ambiental.
O processo serve para verificar se o local teria capacidade de comportar esse tipo de atividade e de contaminantes gerados na decomposição dos corpos.
“Grande parte dos cemitérios que iniciaram suas atividades até 2003 (e muitos deles continuam em funcionamento até os dias atuais) não passou por processos de licenciamento, para verificar as características do solo e do nível do aquífero freático, e tampouco de regularização após 2003. O problema relacionado à contaminação de solo e águas por cemitérios não é atual, e pouco tem sido realizado para que essa condição mude”, explica.
Camila Baum esclarece que a contaminação do local pela decomposição dos corpos é altamente dependente das características desse solo e outras variáveis ambientais, como precipitação.
“No caso do solo, se este possuir características que dificultam a retenção dos contaminantes, esses contaminantes podem ser lixiviados (podem infiltrar) até o aquífero freático e contaminar também as águas, o que pode gerar problemas futuros relacionados à saúde pública”, assinala.
Para a especialista, em relação ao aumento do número de sepultamentos pela pandemia, em cemitérios que já sofriam com problemas de contaminação do solo, há uma tendência de agravamento dos níveis de contaminantes.
“Dependendo das características do solo, a contaminação poderá ser observada no ambiente em períodos mais curtos (meses) ou ser observada após alguns anos. Há muitas variáveis ambientais específicas do local em que está instalado o cemitério a serem consideradas, por isso, cada caso é um caso, e afirmações devem ser feitas com prudência”, pondera.
A autora destaca que o problema deve ser considerado e debatido, principalmente em um contexto em que o número de sepultamentos tem sido elevado e, com isso, os cuidados ambientais no processo de sepultamento têm sido praticamente inexistentes em diversos locais do país.
“Os problemas relacionados a cemitérios que funcionam em áreas não favoráveis para a retenção de contaminantes, infelizmente acabam chamando a atenção da população em geral em situações críticas, como a que estamos vivenciando, e que por serem problemas de resolução complexa acabam sendo deixados em segundo plano neste momento”, afirma Camila Baum.
Em Manaus, o cemitério Nossa Senhora Aparecida, da prefeitura, ficou conhecido em todo o Brasil por causa das valas coletivas abertas por tratores. Ali foi preciso desmatar uma área verde a fim de abrir mais espaço para os corpos. Nem todos os cadáveres vão para uma vala na terra, mas esta é a opção mais barata: cerca de R$ 800. Gavetas custam até R$ 10 mil.
Em janeiro, o prefeito recém-eleito de Manaus, David Almeida (Avante), visitou o local e prometeu construir 22 mil sepulturas verticais. Há 3 anos, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) publicou a Portaria nº 149/2018, com recomendações para regularizar a situação de cemitérios do estado.
O Metrópoles entrou em contato com a Secretaria de Meio Ambiente do estado para saber quais foram as medidas adotadas, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.
Já na capital federal, o número de sepultamentos em fevereiro deste ano teve alta de 22,6%, comparado com o mesmo período do ano passado. De acordo com a empresa Campo da Esperança, responsável pela administração dos cemitérios locais, apenas no último mês foram 1.056 registros de funerais no DF, 195 a mais do que em 2020. A concessionária não respondeu se houve licenciamento ambiental nos cemitérios que administra o Distrito Federal.
Mestre em saúde pública, Ana Paula Silva Campos, da Universidade de São Paulo, na tese Avaliação do Potencial de Poluição no solo e nas águas subterrâneas decorrente da atividade cemiterial, relembra o histórico dos sepultamentos na humanidade.
Ela cita Alberto Pacheco para afirmar que “o sepultamento ou enterramento de corpos humanos parece remontar a 100 mil anos antes de nossa era. A partir dos 10 mil anos a.C, as sepulturas são agrupadas e, assim, aparecem os primeiros cemitérios com túmulos individuais e sepulturas coletivas”.
Ana Paula destaca que o cristianismo foi o grande marco no processo de sepultamento coletivo dos corpos humanos, pois a partir dessa religião houve a disseminação do ideal de descanso para os mortos à espera do juízo final.
“Só é possível falar em cemitérios a partir da Idade Média europeia, quando se enterravam os mortos em igrejas, paróquias, abadias, mosteiros, colégios, seminários e hospitais”, descreve Alberto Pacheco.
Ainda na idade Média, é sabido que, por questões higiênicas, os cemitérios passaram a ser localizados em lugares afastados das áreas urbanas. “Cabe ainda salientar que os cemitérios sempre tiveram como finalidade ser um memorial em que seja possível guardar a memória dos entes falecidos. Talvez esta seja umas das principais razões que implicam o fato de esses ambientes terem, durante anos, ficado às margens de estudos científicos.”
O Metrópoles também entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente com pedido de informações sobre políticas públicas de enfrentamento ao problema ambiental gerado pela pandemia, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.
Fonte: Metrópoles
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